O sujeito me olhava. Fingi não perceber. Era alto, velho e gordo. Estava me esperando ao lado de um automóvel Fiat azul. Quando passei por ele na calçada, gritou, com o corpo encostado no Fiat:
“Você é das antigas!”
Poderia explicar que era das antigas. Que fui embora da cidade algumas vezes e voltei várias. Fiquei ausente trinta anos na última. Estava com sacolas de compras nas mãos. Parei, olhei e respondi tão sério quanto Clint Eastwood na rua principal de um vilarejo:
“Eu sou das antigas!”
Ele sorriu e respondeu:
“Reconheci. Também sou.”
Desconfiei que aquele rosto não era estranho. Parecia o rosto de um daqueles garotos malvados do Maringá Clube nos anos 60, que não precisavam de bom motivo para entrar numa grande encrenca.
Eu disse:
“O seu rosto não me é estranho.”
Ele indagou:
“Você estudou no Marista, não foi?”
Foi uma fase da vida que queria esquecer e não esquecia. Estudei no segundo semestre de 1963. Tinha onze anos. Eu e os primos Josué e Isaías. Foram seis meses e fui expulso. Briguei com o reitor Joaquim, que acabou afastado no ano seguinte por ser flagrado praticando atos reprodutivos com a mãe de um aluno, sem que o marido dela soubesse da iniciativa libidinosa do religioso. Eu queria esquecer aquilo, mas o sujeito à minha frente tirou esta fase de minha vida de sua memória.
Fiz uma pausa e indaguei:
“Qual o seu nome?”
“Wallace. Não se lembra?”
Claro que não lembrava.
Por isso respondi:
“Lembro perfeitamente, Wallace.”
Ele acrescentou:
“Wallace Moreira da Silva. Sobrinho do Napoleão Moreira.”
Napoleão Moreira da Silva era nome de uma praça no centro da cidade.
Wallace corrigiu:
“Sobrinho, não! Filho do sobrinho, Wallace, meu pai. Que está no Reino do Senhor com o tio.”
Quando alguém começa a falar em Reino do Senhor o negócio não fica legal.
Ele disse:
“Você tem cara de nordestino.”
Nunca neguei. Eu tinha o sangue daquela gente da terra de Glauber Rocha, Caetano Veloso e Jordan Caymmi. Sem contar, claro, Dorival Caymmi, o cara que as pessoas pensavam que fosse meu tio e não era. Eu era um baiano que nasceu em Pompéia, no interior de São Paulo.
“Meu pai e minha mãe são baianos.”
Ele disse vitorioso:
“Não precisa se envergonhar. Também tenho sangue nordestino. Lado materno.”
Agora falava. Nos anos 50 e 60 ser filho de nordestino era barra. Muitos escondiam. Só não escondiam os pobres, como meus avós, que eram baianos e tinham caras de baianos. O mesmo acontecia com alagoanos, pernambucanos e cearenses e não tinham como esconder, porque aquelas caras eram mais denunciadoras que uma Estrela de Davi no braço de um judeu em Berlim nos anos 30. Aqueles garotos do Maringá Clube fingiam não saber que no cemitério todos os ossos eram iguais. E não estávamos longe disso. Eu queria ir embora. Mas o sujeito queria contar a história dele.
“Fiquei longe da cidade trinta anos. Morei em Bauru, Uberlândia, Goiânia e Sinop. Depois fui para Porto Velho. Ganhei muito dinheiro e gastei bastante. E não pensei no futuro. Voltei há dois anos.”
Mais um que voltou. Eles não sabiam, mas voltavam para morrer.
Ele revelou como um grande segredo:
“Meu pai tinha um DKW. Mas agora está no reino do Senhor!”
Eu acreditava que todas as pessoas que tiveram um DKW nos anos 60 agora estavam no reino do Senhor. Sem o DKW. A não ser colecionadores ainda não chamados para o reino do Senhor.
Wallace indagou:
“Você está morando onde?”
Eu respondi:
“Na Tomé de Souza.”
Ele ficou impressionado e disse:
“Na rua onde você mora morou um amigo dos bons tempos. Dodô Sabiá. Você conheceu Dodô Sabiá?”
Eu sabia quem era o Sabiá.
“Ele vendia passarinhos.”
“Este. Ele foi office boy de meu pai. Ele comprava produtos ilícitos para a gente se divertir. Mas isto é do passado. Hoje sou um homem do Senhor. Me converti. Como o meu pai. Sou da Federação Cristã Internacional. Estou preparado para ir para o reino do Senhor.”
Ele perguntou:
“Você está preparado para ir para o reino do Senhor?”
Respondi sem hesitar:
“Claro!”
Ele me olhou e inquiriu:
“Você aceitou Jesus Cristo?”
“Faz tempo!”
“Então sabe qual o segredo desta vida.”
Arrisquei. Não era hora, mas tinha a alternativa de sair correndo se não desse certo.
Eu respondi:
“Aceite Jesus. E morra em paz!”
Os olhos dele marejaram.
Ele esticou as mãos fortes sobre os meus ombros e disse:
“Agora sei que você é um escolhido do Senhor.”
Se fosse, não deixava de ser uma honra. Mas a verdade era que tentei um palpite e deu certo.
Finalmente, Wallace disse:
“Vá em paz, irmão! Em breve nos encontraremos.”
Eu fui em paz enquanto ele abriu a porta do Fiat azul, entrou no carro, ligou e foi embora. Mas fui sem saber se o encontro com Wallace em breve a que ele se referiu seria no bairro em que eu morava. Ou numa dimensão em que moravam o pai dele e Napoleão Moreira da Silva.
(Capítulo do romance The End, 2024, 376 págs. ESGOTADO)
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