Vamos começar pelo óbvio. Ernest Hemingway foi um grande escritor. Gosto de seus contos. Alguns romances, como “O sol também se levanta”, são bons. Ele ganhou o Prêmio Nobel. Mas a honraria às vezes cai no colo de escritores de segunda e terceira categorias, com bom trânsito nos círculos políticos e governamentais. Gente tão ruim, que não é bom usá-lo de argumento. Basta dizer que James Joyce, Franz Kafka, Marcel Proust e Jorge Luís Borges, quatro dos quatro maiores escritores do século 20, não o ganharam. E que Jean-Paul Sartre esnobou a escolha, dizendo que não queria nem dinheiro nem diploma.
O que salva a cara do Nobel é que Samuel Becket, Thomas Mann, T. S. Eliot e William Buttler Yeats ganharam e ficaram felizes. Mesmo assim, Ernest era bom. E como era humano, tinha defeitos. Nem vou entrar no ciúme doentio sobre o patrício Francis Scott Fitzgerald, que, coitado, não entendia do assunto e achava Ernest um dos melhores amigos dele. Um “amigo” que quinze anos depois da morte de Scott insinuou que o pinto do cara era pequeno. Sem contar outras indiscrições. Baixo nível. Que não seria condenável se não estivesse em um de seus livros mais deliciosos e mentirosos, o póstumo “A Moveable Feast” (“Paris é uma festa”, no Brasil).
Alguém poderia dizer que Ernest era psicopata invejoso e mentiroso. A primeira parte talvez seja seja exagerada. Embora ele tenha se matado, não matou ninguém, além de animais em safaris africanos. O pai dele também se matou. A segunda parte não. Ernest era inseguro e mentia desde criança. De forma compulsiva. O problema é que muitos escritores são inescrupulosos, sacanas e invejosos. Conheci alguns tipos assim. E não muito longe daqui. Mas Richard Ellmann, que escreveu a melhor biografia de James Joyce, conta uma história sobre Ernest muito boa em seu livro “Ao longo do riocorrente”. Tão deliciosa que parece mentira.
No final de agosto de 1944, Ernest entrou em Paris com as tropas americanas. Quem o visse pensava que era mais que um general – o que não deixava de ser verdade. Generais os Estados Unidos tinham muitos. Ernest Hemingway só um. O maluco escolheu o Hotel Ritz de Paris para quartel general de suas atividades, que eram escrever notícias da guerra para revistas norte-americanas. Em determinado momento, recebeu André Malraux, outro vaidoso com o ego maior que a Torre Eiffel. Ernest estava debruçado sobre o parapeito quando Malraux entrou, fazendo questão de mostrar que ele virou coronel do exército francês. Ernest não tinha patente alguma.
Malraux chegou e foi direto ao assunto: “Quantos homens você comandou?”. Pego de surpresa, Ernest respondeu: “Dez ou doze”. Quando olhou a cara de decepção e desprezo do francês, corrigiu rapidamente corrigiu: “Espere um pouco. Na realidade, foram duzentos”. Era mentira nos dois casos, claro. O rosto de Malraux se crispou ainda mais de desprezo e ele respondeu: “Eu comandei dois mil!”. Pareciam dois moleques contando vantagens – e eram isso. Ernest não se deu por vencido e respondeu com toda empáfia de que foi capaz: “Que pena que não tivemos a ajuda de seus soldados quando tomamos Paris, esta cidadezinha em que estamos agora”.
Muito boa. Amigos de Ernest diziam que ele não era exatamente mentiroso. Apenas gostava de exagerar seus feitos. Se corria um quilômetro, ele não resistia em dizer que foram cem quilômetros. Bem, se isto não for mentira, não sei o que estes caras acham o que é mentira. A tendência de Ernest exagerar seus atos pode ser observada no livro “Paris é uma festa”. Ali ele é o grande vencedor. Até em lutas de boxe. Para que assim pareça, ele reduz intencionalmente a participação de grandes nomes literários como James Joyce, T. S. Eliot e Ezra Pound, para não correr o risco de comparações e exagera as de escritores menores diante dos quais ele se projeta como um gigante. É um truque interessante se não for descoberto. Mas qualquer um descobre sem dificuldade.
Ontem comprei num sebo o livro “Ernest Hemingway Repórter- Tempo de Morrer”, publicado pela Civilização Brasileira em 1969. Eu não sabia se ria ou chorava. O livro induz o leitor a acreditar num absurdo sem tamanho. Que a Europa se livrou do nazismo graças ao talento militar de Ernest Hemingway. Muito antes de John Rambo ganhar sozinho a guerra que os americanos perderam para o Vietnam, Ernest derrotou os alemães com uma tropa de soldados. Tem um capítulo, “Como chegamos a Paris”, em que ele diz na cara dura: “Jamais poderei descrever-lhes as emoções que senti à chegada da coluna blindada do general Leclerc ao sudeste de Paris. Tendo acabado de regressar de uma patrulha que me apavorou até ao tutano e tendo sido beijado por todos os piores elementos de uma cidade que imaginaram ter sido libertados graças à nossa entrada fortuita, fui informado de que o próprio general estava um pouco mais abaixo na estrada e ansioso por ver-nos”. E assim por diante.
No capítulo “A guerra na Linha Siegfried” ele alerta que “uma porção de gente lhes contará como foi ser o primeiro a pôr o pé na Alemanha e como se rompeu a Linha Siegrifed, e uma porção de gente estará completamente errada”. Claro. Porque “dois dias antes, no último dia do tempo virar borrascoso, tínhamos chegado ao fim da correria. Fora uma bela corrida de Paris a Le Cateau, com furiosos combates em Landrecies, que poucos viram e ainda menos sobraram para recordá-los. Depois, foi o ataque e a passagem forçada nos desfiladeiros da Floresta das Ardenas, numa paisagem semelhante à das ilustrações para os contos de fadas dos Irmãos Grimm, só que um pouco mais sombria”.
Depois de ler os artigos para Collier’s sobre a participação de Ernest na ofensiva aliada na frente ocidental, o leitor não tem dúvida de que sem ele, o mundo não se livraria dos nazistas. Claro que para que esta versão ser aceita, é melhor não entramos no mérito do consenso de todos os historiadores sérios de que os alemães foram derrotados nos campos da Rússia, com centenas de milhares de mortos em batalhas decisivas em Moscou, Leningrado, Stalingrado e na maior batalha de blindados e aviões da história em Kursk. Também não é conveniente mencionar que os alemães não conseguiram impedir a avassaladora entrada dos soviéticos em Berlim, a batalha final da guerra, na Europa. Que coisa feia, Ernest!