CARDEAL SCHERER : Aonde leva a inteligência artificial?

O emprego da inteligência artificial levanta questões éticas importantes, que precisam ser tomadas em consideração. Como assegurar que ela esteja a serviço da verdade, da justiça, do bem comum e da dignidade humana?

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A inteligência artificial é, sem dúvida, uma das mais avançadas criações do engenho humano. Com razão, ela pode ser definida como uma maravilha da ciência e da técnica, que chegou ao ponto de reproduzir muitas operações tidas, até aqui, como exclusivas da inteligência humana. Quem teria imaginado que se poderia atribuir à máquina não apenas a capacidade de memória, mas também certa forma de discernimento, escolha e decisão? O que se conseguia fazer mediante o esforço e duro trabalho durante dias e até meses, a inteligência artificial é capaz de resolver numa fração de segundos! Pois já estamos nesse ponto e tudo faz pensar que temos ainda muito mais pela frente.

Ninguém duvida da utilidade da inteligência artificial e das suas múltiplas aplicações, que podem facilitar e acelerar as ações humanas mais diversas. No entanto, essa maravilha tecnológica não deixa de levantar uma série de preocupações quanto ao seu uso. De fato, ela funciona com base em dados que a inteligência humana produz, coloca em circulação. Ficam as perguntas sobre a natureza dos dados, que não são necessariamente verdadeiros e neutros, podendo ser manipulados por quem os queira usar para finalidades determinadas. Quem terá o domínio dos dados e para quais objetivos serão usados? A inteligência artificial segue sendo fruto de mecanismos dependentes de quem os manuseia. A verdadeira inteligência ainda é a humana e pessoal, mesmo que ela possa parecer menos perfeita e capaz. Não fosse assim, estaríamos em sério perigo de nos tornarmos vítimas da nossa própria criação.

O emprego da inteligência artificial levanta questões éticas importantes, que precisam ser tomadas em consideração. Como assegurar que ela esteja a serviço da verdade, da justiça, do bem comum e da dignidade humana? Não é preciso pensar muito para se dar conta de que ela poderia ser usada para alcançar objetivos desonestos a serviço de ideologias, poder econômico e político, e que a maioria da comunidade humana, desprovida desse poder, poderia ser reduzida à condição de massa de manobra.

A inteligência artificial precisa estar a serviço da diversidade cultural e das múltiplas expressões locais da experiência humana. Há quem preveja uma grande homogeneização da cultura, perdendo-se a riqueza cultural da humanidade. Transformada numa espécie de deus ex machina, a inteligência artificial poderia acabar por massificar a condição humana, robotizando indivíduos e povos inteiros. As implicações éticas podem ser imensas e graves!

Diante da capacidade e eficiência crescente da inteligência artificial, o próprio ser humano pode entrar em crise, questionando-se quanto à sua identidade e autoconsciência. Se a inteligência artificial é capaz de memória, até bem mais eficiente que a de seus criadores; se é capaz de projetar e, de alguma forma, decidir e escolher, cabe perguntar sobre o que ainda restou de nós mesmos. O que, afinal, caracteriza o ser humano? Já não será a simples capacidade de memória, nem mesmo aquilo que se chama superficialmente de inteligência. O que é o humano no homem?

Será preciso redescobrir e valorizar não apenas aquilo que ele é capaz de fazer, mas, sobretudo, aquilo que ele é. O humano está mais no ser do que no fazer. Antes de tudo, ele é um ser vivente, dotado de corpo e alma, e não uma máquina; ele é único e irrepetível, livre e capaz de discernimento complexo, de escolhas, sentimentos, emoções e interações; ele é dotado de intencionalidade, autoconsciência e senso ético. O homem é um buscador do sentido, da beleza, da verdade e da bondade. Ele é capaz de se questionar sobre seus limites e potencialidades, sobre o certo e o errado no seu agir.

O uso da inteligência artificial, como todas as belas criações humanas, pode vir a favor da condição humana ou contra ela. Tudo depende do uso que dela se faz. Mas seria ingênuo não ver no seu uso insensato o risco de levar a perder mais e mais o que é humano. Não é sem motivo que a inteligência artificial é, atualmente, um dos argumentos mais amplamente estudados e debatidos no mundo inteiro. As autoridades responsáveis pela gestão do bem comum precisam colocar-se de acordo sobre o uso dessa maravilha da inteligência humana, para que a criatura não venha a devorar implacavelmente o seu criador.

Se essa novidade tecnológica suscita expectativas, entusiasmos e apreensões, é certo que a solução para os questionamentos levantados passa pelo próprio ser humano. Será ele quem deverá encontrar saídas para que esse potencial tecnológico se mantenha na medida do próprio homem. O Papa Francisco, na sua mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais (12 de maio de 2024), recordou que, num mundo rico em técnica e pobre de humanidade, é preciso formar um novo tipo humano, dotado de uma espiritualidade mais profunda, uma nova liberdade e interioridade, capaz de humanizar suas próprias criações. E recomendava ler e interpretar a realidade a partir da sabedoria do coração.

Publicado originalmente no jornal O ESTADO DE S. PAULO em 14 de dezembro de 2024

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