CRÔNICA – Meu amigo Bidu

Por Edilson Pereira - Jornalista e Escritor

CRÔNICA - Meu amigo Bidu

Chamei um Uber ontem no centro da cidade depois do almoço para vir para casa. E como sempre faço, antes de guardar o celular, tratei de memorizar três informações: a cor do carro, os dois números finais da placa e o nome do motorista. O carro era de cor branca e o final da placa era 69.

O motorista se chamava Obdulio. Os dois primeiros não ia esquecer. O número 69 é caro para mim. Porque é o número da caixa postal da Editora Baskerville e são os números finais do telefone fixo de casa e de meu telemóvel, como dizem os patrícios do Abel Ferreira.

Sem contar que até o último dia 11 eu estava mergulhado num intenso e longo 69. Um ano inteiro. Que era a minha idade. Como podem deduzir, agora estou 70. A gente tenta, inventa mas não aguenta mais o ritmo desta realidade. Mas, como diria Mao Tse Tung, vamos em frente que atrás vem gente. Mas o 69 não me impressionou. A gente se acostuma. O que me impressionou foi o nome do motorista. Nunca conheci alguém chamado Obdulio. Enquanto esperava o Uber, fiquei matutando quem foi o louco que botou no filho o nome do grande carrasco do Brasil na Copa de 1950.

Para quem não sabe, Obdulio Jacinto Muiños Varela foi um jogador uruguaio. Era volante. Capitão do time. Considerado o jogador uruguaio mais reconhecido na história, mesmo que não fosse considerado o melhor de sua posição. Ele foi um dos poucos condecorados em vida com a Ordem do Mérito da Fifa, em 1994. Com Obdulio em campo a Celeste Olímpica (como é conhecida a seleção uruguaia) nunca foi derrotada. Ele também foi um dos maiores ídolos do Penãrol. Obdulio era homem de forte caráter, grande liderança, capitão da seleção que meteu bucha no Brasil em pleno Maracanã. Ninguém o chamava pelo nome em campo.

Para os companheiros era apenas “El Negro Jefe” – “O Chefe Negro”. Sobre ele, Nelson Rodrigues escreveu: “Não atava as chuteiras com cordões, mas com as veias”. E mais: “Todo escrete tem sua fera. Naquela ocasião, a fera estava do outro lado. E se chamava Obdulio Varela”.

Um dia, num programa de televisão, perguntaram para o zagueiro Diego Lugano que jogou no São Paulo se ele imitava Obdulio Varela. Ele ficou sério e respondeu: “Você não pode brincar de ser Deus!”.

Por tudo isso, esperei ansioso o Uber do Obdulio em plena Boca Maldita. Assim que entrei disse:

“Bom dia. Você é o primeiro Obdulio que conheço”. Era verdade. Ia perguntar em seguida porque o pai dele colocou este nome de carrasco do escrete brasileiro no filho quando Obdulio respondeu num português com forte sotaque espanhol que se chamava Obdulio e também não conhecia ninguém com este nome. Emendei: “Então você é uruguaio. É de Montevidéu?”. Ele respondeu que não era uruguaio. Era venezuelano, de uma cidade do sul do país. Os venezuelanos gostam mais de beisebol do que de futebol.

Ele disse que não gostava de beisebol. Gostava de futebol, mas não sabia porque o pai escolheu aquele nome. E fomos conversando até o fim da viagem. Sobre a América Latina, pais e filhos, futebol e coisas que gostamos como mulheres e das quais não gostamos como violência.

Ao fim da corrida já estava chamando Obdulio de Bidu. E ele de meu amigo. Tem pessoas das quais a gente se torna íntimo em pouco tempo. Claro que arredondei o preço da corrida, com dois reais e trinta e sete centavos a mais. Afinal, não é toda hora que você é conduzido por Obdulio. E pode sair do encontro chamando-o de Bidu. Além disso, era o próprio Obdulio Varela quem dizia: “A glória não existe. A glória é ter amigos que gostem de ti. Com a fama não se vive”.

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