Após ter sido considerado “o político mais popular do planeta“, por Barack Obama, Luis Inácio Lula da Silva viveu anos difíceis. Em 2017, o ex-presidente do Brasil foi preso, depois de ter sido condenado por corrupção e lavagem de dinheiro, no caso do triplex no Guarujá. As perdas pessoais foram tão devastadoras quanto as perdas políticas e muitos pensaram que Lula sairia de cena.
Mas, no início deste ano, o Supremo Tribunal Federal Brasileiro declarou que o ex-juiz Sergio Moro fora parcial na condenação do ex-presidente e decidiu revogaras condenações que o mantiveram na prisão quase dois anos, permitindo ao antigo líder do Partido dos Trabalhadores (PT) brasileiro reaver os seus direitos políticos.
As sondagens mostram que Lula está bem colocado para vencer Jair Bolsonaro na eleição presidencial do próximo ano.
Anelise Borges, Euronews: Na última vez que conversámos, em 2016, disse que não se candidataria mais à presidência, que estava cansado e iria dar espaço às novas gerações. Muita coisa aconteceu desde então e eu acredito que o senhor mudou de ideias.
Lula da Silva: Quando falei consigo, na primeira vez, pensava que com 75 anos estaria velho, mas descobri que estou novo com 75 anos. Depois de o Biden, com 78, ter disputado as eleições e ganho, nos Estados Unidos, eu fiquei pensando ‘porque não me candidatar às eleições no Brasil?’.
Eu ainda não decidi disputar as eleições. Nós dedicámos 2021 a brigar para conseguir vacinas para todo o povo brasileiro, para que a gente consiga um auxílio emergencial, para que o povo possa sobreviver e para que a gente consiga crédito para as pequenas e médias empresas manterem os seus empregos. Somente a partir do final do ano é que a gente vai começar a pensar na questão das eleições. E se o PT quiser – e se outros partidos aliados quiserem – eu estou totalmente à disposição para ser candidato a presidente do Brasil e recuperar o Brasil, fazer o Brasil voltar a crescer e colocar o Brasil a nível internacional como um país protagonista, como fomos quando eu governei o Brasil.
A.B.:Mencionou que ia pedir mais vacinas para ajudar os brasileiros a atravessar a atual crise, mas como é que o senhor pretende fazer isso sem estar no poder? Pretende, por exemplo, pedir ajuda internacional?
L.S.: Nós estamos fazendo não só campanha e denúncia, como estamos brigando no Congresso Nacional para que o Congresso Nacional, a Câmara e o Senado ajudem a comprar vacinas que estão à disposição no mercado. O Brasil foi muito irresponsável. O Brasil deixou de comprar 70 milhões de vacinas quando poderia ter comprado logo no início da pandemia. O Presidente da República foi irresponsável. Ele é um negacionista. Ele não acredita no coronavírus. Ele não acredita na vacina. A única coisa em que ele acredita é em vender remédios que não prestam para combater o coronavírus. Por isso, tivemos um problema. Mais de metade das pessoas que morreram no Brasil é pela irresponsabilidade e pelo comportamento do governo brasileiro. Se o governo se tivesse comportado de forma responsável, humanista, criado um comité de crise, reunido os especialistas e cientistas, a gente não teria a quantidade de vítimas que temos hoje.
A.B.: O senhor fala de uma crise que já custou a vida de meio milhão de brasileiros, no momento em fazemos esta entrevista. Mais de 1700 pessoas continuam a morrer no Brasil todos os dias. Acha que teria feito um trabalho melhor na gestão desta crise?
L.S.: Teria. Sabe por quê? Quando surgiu a gripe H1N1, nós vacinamos 83 milhões de pessoas em apenas três meses. Ora, o Presidente da República não é obrigado a saber tudo, o papel do presidente é o do maestro, é coordenar a sua equipa. Se o presidente tivesse criado um comité de crise, tivesse chamado cientistas para participar, tivesse chamado – sob a coordenação do ministro da Saúde – os secretários de Estado da Saúde, tivesse criado um protocolo, nós não teríamos tido no Brasil a quantidade de vítimas que tivemos. É por isso que digo sempre que metade dessas vítimas é da responsabilidade do Presidente da República. É por isso que eu faço questão de dizer que ele é um genocida pela quantidade de mortes que tivemos no Brasil.
A.B.: O presidente que o senhor acusa de ser um genocida chama-se Jair Bolsonaro e é uma figura realmente muito controversa, inclusive na comunidade internacional. Porém, muitos culpam o seu partido, o Partido dos Trabalhadores, – e as falhas desse partido – pela ascensão de Jair Bolsonaro. Dizem por exemplo que o desencanto com 14 anos de PT no poder levou a uma situação política que empurrou muita gente para votar no candidato de extrema-direita. O que é que tem a dizer sobre isso?
L.S.: Os que dizem isso são aqueles que votaram no Bolsonaro, aqueles que contribuíram para ele ganhar. Quem é que contribuiu para o Bolsonaro ganhar as eleições? Aqueles que me acusaram falsamente, aqueles que me colocaram 580 dias na cadeia para que eu não pudesse disputar as eleições, aqueles que fizeram acusações falsas contra mim. Agora já está provado que as acusações eram falsas, que o juiz era parcial, que os procuradores faziam parte de uma quadrilha. Tudo isso já está provado.
Bolsonaro é resultado de uma mentira, de uma farsa, porque nunca houve tantas fake news numa campanha. Ele não participou no debate. Ele mentiu e mentiu descaradamente. Ainda hoje, Bolsonaro conta quatro mentiras por dia. Quatro mentiras por dia! Imagine quantas é que ele contou durante o processo eleitoral. Então, na verdade, o povo tomou uma decisão – na minha opinião – equivocada ao votar em Bolsonaro, mas esse é o risco da democracia, esse é o risco do processo eleitoral.
A polarização no Brasil agora é diferente. Não é entre dois extremos, um de direita, outro de esquerda. A polarização no Brasil é entre o fascismo e a democracia. Eu represento a democracia, porque sou de um partido democrático que tem uma história de governança muito democrática. E Bolsonaro representa o fascismo. Portanto, o que está em jogo é isso: é uma polarização de verdade. O povo vai decidir quem gosta de democracia, quem quer o presidente democrático, ou quem quer a continuidade de um fascista no governo. É isso que está polarizado. E a gente não tem de ter medo da polarização. A gente tem de ter consciência de que, depois das eleições, quem ganhar as eleições vai ter de governar unificando a sociedade, conversando com todos os seres humanos daquele país e tentar construir uma governança em que as pessoas possam viver mais felizes e em paz, trabalhar e viver dignamente.
É isso que eu vou fazer. Eu já fiz. Já fiz uma vez, já fui presidente [durante] oito anos, já consegui provar que é possível construir um Brasil altamente desenvolvido, um Brasil que melhora a qualidade de vida do seu povo. E é conhecida a luta que eu tenho contra a desigualdade e para combater a pobreza. Nós conseguimos tirar o Brasil do “Mapa da Fome” da ONU e lamentavelmente a fome voltou ao nosso país. Eu serei um presidente que vai governar o país para todos, mas as pessoas têm de saber que, ao governar para todos, a parte pobre da população é a parte que terá preferência numa governança minha.
A.B.: Parece que já está em campanha eleitoral.
L.S.: É bem possível. O problema é o seguinte: eu não posso me anular. Eu tenho de mostrar para as pessoas que estou vivo, que estou disposto, que estou com saúde, que eu sei como fazer a concertação desse país, que eu sei como construir a democracia.
A primeira coisa que eu fiz quando ganhei as eleições, em 2003, foi criar um Conselho de Desenvolvimento Económico e Social, juntando os grandes empresários, padres, pastores, índios, negros, brancos, sindicalistas. Ou seja, eu juntei a sociedade civil para que ela, junto comigo, assumisse a responsabilidade de governar o Brasil. E deu certo! É por isso que quando deixei a presidência tinha 87 porcento de «bom e «ótimo» na opinião pública.
A.B.: A comunidade internacional anda muito preocupada com a situação no Brasil. Tem uma mensagem para essa comunidade internacional, principalmente para os países europeus? Qual seria sua mensagem hoje?
L.S.: Os governantes europeus, tanto os que estão no governo, como os que já foram do governo, o movimento sindical, as entidades e as ONG conhecem o PT, conhecem o Brasil e conhecem o nosso governo. Nós tivemos uma relação exuberante.
Eu posso dizer que, quando fui Presidente da República, a minha relação com todos os partidos da Europa era extraordinária, [tal como] com todos os presidentes. Com Gordon Brown, Tony Blair, Sarkozy, Chirac, Angela Merkel, Schroder. Eu conversava com todo o mundo. O Brasil é um país que não tem [nenhum] contencioso. E o Brasil precisa de fazer uma parceria com a União Europeia.
Nós precisamos de consagrar o acordo entre a União Europeia e a América do Sul para que a gente possa também dar à Europa a oportunidade de não ficar ilhada entre a China e os Estados Unidos. Eu fico vendo as notícias daqui e vejo os americanos fazendo oposição ao gasoduto que a Alemanha está tentando fazer com a Rússia. Eu fico vendo os Estados Unidos a brigar por conta da indústria da inteligência artificial, da Huawei, e da indústria de dados, ou seja, os Estados Unidos e a China precisam de se colocar de acordo. A Europa não pode ficar no meio dessa briga, não. Por isso é que a América Latina e a relação com o Brasil é muito importante, para que todos os países possam compreender que acabou a Guerra Fria, que a gente que não quer mais guerra nuclear. A gente não pode ter uma guerra comercial. A gente não pode ter uma guerra da indústria digital. Nós precisamos de construir um jeito de melhorar a vida da humanidade.
E eu acho que a Europa, com o seu estado de bem estar social, pode contribuir para que a gente faça políticas para ajudar a desenvolver os países mais pobres do mundo. Inclusive com a vacina contra o coronavírus para que ela seja transformada num bem da humanidade, para que todas as pessoas possam receber vacinas. euronews