Espiritualidade: MARIA, MÃE DE DEUS

Estudo de reflexão do Teólogo Hugo D'Ans - MAIO, MÊS MARIANO

Espiritualidade: MARIA, MÃE DE DEUS

Tradicionalmente, o mês de maio é dedicado à figura de Maria pela piedade popular. Já no século XIII, o rei de Castilha, Alfonso X, o Sábio, tinha associado em uma de suas canções a beleza de Maria e maio que, no hemisfério norte, é o mês das flores, no auge da primavera. No século seguinte, o dominicano Henrique Suso, tinha o costume de tecer coroas de flores para oferecê-las, no primeiro dia de maio, à Virgem. Na mesma época, Filipe Néri exortava os jovens a manifestarem um culto particular a Maria durante o mês de maio, oferecendo-lhe orações e flores. É interessante observar que o mês de maio abre-se com uma festa dedicada a José Operário, o pai de criação de Jesus, e termina com a festa da Visitação, acentuando assim o caráter mariano deste mês.

O mês de maio é também o mês durante o qual se celebra o dia das mães. Juntando estas duas comemorações numa só, vamos refletir um pouco sobre o título de MÃE de DEUS atribuído a Nossa Senhora.

Em primeiro lugar, temos que evitar dois tipos de radicalismo antes de abordar a nossa reflexão, a saber: o maximalismo e o minimalismo.

Alguns cristãos exaltam tanto e de forma exagerada Nossa Senhora que caem na mariolatria. Por mais santa e importante que seja Nossa Senhora, ela nunca pode ocupar o lugar de seu Filho, nem ofuscar sua presença: só Jesus salva, Ele que é o autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem (Hebreus 5,9). No Novo Testamento, Maria está sempre presente nos momentos mais decisivos da vida de Jesus e da Igreja apostólica (Pentecostes), porém sempre de modo extremamente discreto. Por querer glorificar demais a figura de Maria, em si mesma, de modo isolado, acaba-se prejudicando não somente a sua imagem, mas também a do próprio Filho que ela gerou. Por ocasião do primeiro sinal de Jesus, durante as bodas de Caná, ela se dirige aos serventes (e também a nós hoje) dizendo-lhes “Fazei tudo o que Ele (Jesus) vos disser” (João 2,5). Maria Santíssima remete sempre à pessoa de seu Filho. Aqui vale lembrar a célebre máxima que define bem a estreita relação que existe entre Maria e seu Filho: “A Cristo por Maria, ao Pai por Cristo”.

Por outro lado, o extremo oposto é o iconoclasmo mariano que repudia, sob acusação de idolatria, qualquer manifestação popular duma fé em Maria e a legitimidade duma sadia e equilibrada devoção à sua pessoa. É claro que devemos adorar só a Deus, porém podemos venerar os santos, de modo especial a “Toda Santa” (título atribuído a Nossa Senhora na teologia ortodoxa) que viveram de modo exemplar o evangelho de Jesus Cristo. São os “heróis da fé” e os invocamos para que possamos imitar suas virtudes e sua fidelidade, até o dom da própria vida se necessário. Também, não é preciso manchar a imagem da Mãe para salvaguardar a do Filho! Xingar a mãe de alguém é a pior e a mais baixa das ofensas! Nas redes sociais corre o pensamento seguinte: “Se a terra que Jesus pisou é santa, imagine o ventre que a gerou!”. A religiosidade popular atribuiu centenas de títulos a Maria, porém, com toda certeza, o mais antigo e o mais importante de todos eles é o de Mãe de Deus. O pai da Reforma Protestante, Martinho Lutero, em 1521, escreveu um belíssimo comentário ao “Magnificat” (título latino que corresponde ao “Exalta” de Lucas 1,46b: “Minha alma exalta o Senhor”) onde, repetidas vezes, chama carinhosamente Maria de a “doce Mãe de Cristo”. No seu sermão de Natal de 1529, desenvolve o mesmo tema estendendo a maternidade divina de Nossa Senhora a todos os cristãos (maternidade espiritual): “Maria é a Mãe de Jesus e a Mãe de todos nós”.

A Constituição Dogmática sobre a Igreja “Lumen Gentium” (“Luz dos Povos”), um dos mais importantes documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962- 

1965), exorta instantemente “os teólogos e pregadores da palavra de Deus … a evitarem com cuidado, tanto um falso exagero como uma demasiada estreiteza na consideração da dignidade singular da Mãe de Deus. Estudando, sob a orientação do magistério, a Sagrada Escritura, os santos Padres e Doutores, e as liturgias das Igrejas, expliquem como convém as funções e os privilégios da Santíssima Virgem, os quais dizem todos respeito a Cristo, origem de toda a verdade, santidade e piedade. Evitem com cuidado, nas palavras e atitudes, tudo o que possa induzir em erro acerca da autêntica doutrina da Igreja os irmãos separados ou quaisquer outros. E os fiéis lembrem-se de que a verdadeira devoção não consiste numa emoção estéril e passageira, mas nasce da fé, que nos faz reconhecer a grandeza da Mãe de Deus e nos incita a amar filialmente a nossa mãe e a imitar as suas virtudes.” (n. 67).

Na sua carta aos Gálatas, datada de 56-57, Paulo escreve: “Ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher e sujeito à lei (4,4)”[i]. Embora seu nome não seja explicitamente citado, temos aqui a primeira alusão à maternidade divina de Maria no Novo Testamento. A insistência do Apóstolo remete claramente ao mistério da encarnação. Muitos cristãos, marcados pela cultura grega para a qual só o espírito tinha valor e o corpo era desprezado por ser material, tinham uma enorme dificuldade em aceitar a encarnação do Cristo. Na introdução do seu evangelho, João insiste também neste elemento central da fé cristã “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (1,14). O Verbo, Jesus, assumiu a condição humana pela sua encarnação que se tornou possível graças ao “Sim” duma jovem Virgem, prometida em casamento a José, antes de coabitar com ele. O Anjo do Senhor apareceu a José em sonho, anunciando-lhe o caráter divino do filho que foi gerado por Maria: “Ele provém do Espírito Santo, (…) ele salvará o seu povo dos seus pecados” (Mateus 1,20-21). A antiga profecia se cumprirá: “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, ao qual darão o nome de Emanuel, o que se traduz: “Deus conosco!’” (Isaias 8,8.10 – versão grega).

 Pouco depois, Maria partiu para uma cidade da Judeia para visitar Elisabete, sua parenta, grávida de seis meses, apesar de sua idade avançada, “pois nada é impossível a Deus” (Lucas 1,37). Elisabete, “repleta do Espírito Santo, deu um grande grito e disse: ‘Tu és bendita mais do que todas as mulheres; bendito é também o fruto do teu ventre! Como me é dado que venha a mim a mãe do meu Senhor?’ ” (Lucas 1,42-43). O título de “Senhor”, aplicado 19 vezes por Lucas a Jesus, tem um sentido transcendente e divino. A saudação de Isabel sugere que o filho de Maria é o Messias. Termina com uma bem-aventurança: “Bendita aquela que creu: o que lhe foi dito da parte do Senhor se cumprirá!” (Lucas 1,49). Em contraste com Zacarias que duvidou e pediu um sinal, Maria crê incondicionalmente, “corresponde à graça e se abandona dizendo ao Anjo: “Faça-se em mim segundo a tua palavra” (v. 38). Não diz: “Eu farei segundo a tua palavra”: não! Mas: “Faça-se em mim…”. E o Verbo se fez carne em seu ventre.” (Papa Francisco, durante o Ângelus de 08.12.2017). Por isso, Agostinho de Hipona afirma que a Virgem “concebeu antes no coração que no ventre” (Discurso, 215, 4). Concebeu primeiro pela fé e depois pelo parto. Sentindo-se agraciada entre todas as mulheres, Maria canta os louvores Deus: “Minha alma exalta (magnificat) o Senhor… porque ele pôs os olhos sobre a sua humilde serva… porque o Todo-Poderoso fez em mim grandes coisas: santo é seu nome!” (Lucas 1,46b-49).      

A Sagrada Escritura contém os germes a partir dos quais a tradição viva da Igreja extrairá formulações de fé cada vez mais precisas e conformes à linguagem das diversas épocas. Um bom exemplo disso é o título de “Mãe de Deus” atribuído a Nossa Senhora.

Durante os primeiros séculos, a fé cristã teve que reagir contra uma série de heresias a respeito da pessoa de Jesus Cristo. Algumas, insistindo sobre a sua divindade, negavam a sua humanidade: ele tinha uma aparência humana, mas não era verdadeiramente homem. Outras, insistindo sobre a sua humanidade, negavam sua divindade. A dificuldade consistia em manter unidas as duas naturezas de Jesus, “verdadeiro homem” e, ao mesmo tempo, “verdadeiro Deus”. Por causa disso, foram convocados vários concílios ecumênicos, todos realizados no Oriente, na atual Turquia.

O primeiro, realizado em Niceia (325), definiu solenemente no seu Credo que o Filho de Deus é “gerado”, “não criado” (caso contrário, não seria Deus) e “consubstancial ao Pai (‘isto é ‘da mesma substância’ ou ainda ‘da mesma natureza’)”. Condenou o presbítero Ário

[i] Todas as citações bíblicas são tiradas da Tradução Ecumênica da Bíblia, Loyola: S. Paulo, 1994.

(256 + 336) que negava a divindade de Jesus afirmando que «o Filho de Deus saiu do nada» e devia ser «duma substância diferente da do Pai».

Um segundo concílio ecumênico realizou-se em 381, na cidade de Constantinopla (a atual Istanbul), então capital do Império Romano. Confirmou a condenação de Ário e precisou o Credo de Niceia declarando que Jesus “se fez homem” e se “encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria”. Realmente, Jesus nasceu do útero de Maria, com as duas naturezas indissociavelmente unidas, graças à intervenção misteriosa do Espírito Santo.

Desde o século III, a devoção popular invocava já Maria sob o título de “Mãe de Deus”. O patriarca de Constantinopla, Nestório (386-451), combateu o que lhe parecia uma heresia. Para ele, Maria só poderia ser a mãe de Cristo, isto é da humanidade de Jesus, e não de sua divindade, porque o Verbo não pode nascer de uma mulher, por mais perfeita que seja.

Cirilo (313 + 386), patriarca de Alexandria, grande defensor da unidade de Cristo homem e Deus, reagiu contra Nestório. O que estava em jogo não era apenas o status de Maria, mas sobretudo a realidade da encarnação. Negar o título de “Mãe de Deus” equivale a separar as duas naturezas de Cristo que o Credo de Niceia havia perfeitamente unido pelo termo “consubstancial”. Depois de muitas controvérsias, um terceiro concílio ecumênico foi realizado em 431, em Éfeso onde, conforme a tradição, Maria teria vivido com João depois do Pentecostes. Nestório foi condenado e o título de “Mãe de Deus” consagrado. O objetivo era mais cristológico do que mariológico: tratava-se sobretudo de ressaltar a unidade das duas naturezas de Jesus. Maria não gerou simplesmente a carne de Jesus ou um homem que, posteriormente, se tornaria Deus. Maria gerou a pessoa de Jesus na sua totalidade, isto é Homem e Deus; assim ela pode ser realmente chamada de Mãe de Deus.

O Concílio ecumênico de Calcedônia (451) precisará a definição deste título afirmando que Maria não é mãe da divindade, mas de Deus enquanto encarnado na história: “O Filho que antes dos séculos é gerado pelo Pai segundo a divindade, nos últimos dias, do mesmo modo, por nós e por nossa salvação, é gerado por Maria Virgem Mãe de Deus segundo a humanidade.” O concílio condenava assim os que afirmavam que Cristo só tinha uma “carne celeste”, fruto da obra do Espírito Santo, o que tornava irreal a maternidade de Maria e a encarnação do Verbo, mistério central da fé cristã. Se a invocação de “Mãe de Deus” tem uma conotação mariana, ela é também cristológica porque protege a fé na humanidade e na divindade de Cristo e defende, ao mesmo tempo, a íntima união das duas naturezas – divina e humana – numa só pessoa. Toda autêntica Mariologia serve de pedestal à Cristologia.

Do título fontal “Mãe de Deus” decorrem todos os outros títulos que a fé popular atribuirá a Nossa Senhora. Da maternidade divina de Maria passou-se rapidamente à sua maternidade espiritual a partir do texto de João 19,26-27:  “Vendo assim a sua mãe e perto dela o discípulo que ele amava, Jesus disse à sua mãe: ‘Mulher, eis aí o teu filho’. A seguir, disse ao discípulo: ‘Eis a tua mãe’. E desde aquela hora o discípulo a recebeu em sua casa.” Jesus crucificado só pronunciou sete palavras. Aqui ele faz muito mais do que resolver um problema doméstico. Na pessoa de João, Maria torna-se a mãe de todos os discípulos de Cristo, seus filhos espirituais. É importante ressaltar que quando Jesus se refere a Maria como mãe de João, a mãe biológica deste último está lá: “Estavam aí algumas mulheres que olhavam, a distância: (…) entre elas achavam-se Maria de Mágdala, Maria, Mãe de Tiago e José, e a mãe dos Filhos de Zebedeu [João e Tiago]” (Mt 27,55-56). Esse detalhe reforça a importância e a extensão das palavras de Jesus.

A oração “À vossa proteção recorremos Santa Mãe de Deus” (“Sub Tuum Praesidium”) ilustra muito bem como a Igreja primitiva considerava Maria como uma mãe espiritual. Em 1927, no Egito, foi descoberto um fragmento de papiro, datado do século III, no qual está escrita a mais antiga oração dirigida a Nossa Senhora que se conhece. Tem ela um grande valor histórico pela sua explícita referência ao tempo das perseguições dos cristãos (“livrai-nos sempre de todos os perigos”) e uma excepcional importância teológica por recorrer à intercessão de Maria, invocada com o título de “Santa Mãe de Deus”:

“À vossa proteção recorremos Santa Mãe de Deus.

Não desprezeis as nossas súplicas em nossas necessidades,

Primeira representação conhecida da Virgem Maria (Catacumbas de Santa Priscila – século II)[i]

Disponível em: https://ebrael.wordpress.com/2013/11/16/sub-tuum-praesidium/ (Acesso em: 10.04.2018).