Na Liturgia deste Domingo, XXVII do Tempo Comum, veremos, na 1a Leitura (Hab 1, 2-3; 2, 2-4), que o profeta Habacuc queixa-se a Deus perante o triunfo do mal, denuncia a situação do povo durante o reinado do rei Joaquim (609-598 a.C.): injustiças, crimes, opressão, violência, esquemas espúrios, direito distorcido, enfim, a ruína do país. O profeta expressa sua impaciência: “Até quando, Senhor?” Porque a impiedade está vencendo, porque o direito e o próprio justo são humilhados? “O senhor lhe respondeu”: Quem não é correto vai morrer, não resistirá aos embates, cairá na ruína, sucumbirá, será vacilante, como cata-ventos que variam conforme as circunstâncias, enquanto “O justo viverá por sua fé”. A fé é a total entrega aos desígnios de Deus que, muitas vezes, supera nossa compreensão imediata do mistério, das dificuldades e contradições da nossa história. Ao final, a vitória nos será garantida e os justos viverão para sempre.
Na 2ª Leitura (2Tm 1, 6-8.13-14), o apóstolo Paulo exorta Timóteo a manter a plena fidelidade ao Senhor, convida-o a testemunhar a fé em todos os lugares e culturas. Paulo compreende que o discípulo de Jesus, em qualquer tempo e lugar, deve reescrever o Evangelho com a sua própria vida. Neste texto, ele faz um insistente convite à nossa renovação espiritual: “Reaviva o dom de Deus que há em ti”. Reavivamos a vida de Deus em nós quando nos colocamos à escuta do Senhor que nos fala pela vida (realidade) e pela Palavra (bíblia). Mais necessário será testemunhar nossa fé perante as adversidades, perplexidades e angústias do tempo presente, pela superficialidade da cultura urbana e pela insegurança diante de grandes desafios. Vivemos diante de uma lacuna que coloca em xeque nossa vocação e o próprio Projeto de Deus. A cada dia aumentam os problemas sociais e, cada vez mais, aumentam os sinais das contradições de nosso tempo, em que a miséria e opulência convivem sob a angústia de uns e a indiferença de outros, em que é preciso investir na força criadora da evangelização inculturada, por meio do serviço e do diálogo, do anúncio e do testemunho de comunhão. O Espírito Santo, contudo, não nos deixa acomodados e nos impele a repetir, como em um canto novo, a experiência do profeta: “Seduziste-me, Senhor, e eu me deixei seduzir” (Jr 20,7). Seduzidos pelo Senhor, devemos ser mistagogos (mestres nos mistérios), levando muitas pessoas à mesma experiência do amor de Deus.
No Evangelho (Lc 17, 5-10), vemos alguns ensinamentos sobre a fé e a humildade. O Evangelho começa com o pedido dos discípulos: “Senhor, aumenta nossa fé”, pois eles sabem que, só se tiverem fé, se estiverem convencidos de que vale a pena deixar tudo para seguir o Mestre, é que poderão se decidir pelo reino. A parábola, também, quer apontar a gratuidade e a simplicidade no serviço ao Reino, isto é, a dedicação integral no servir. O cristão não deve orgulhar-se quando cumpriu seu dever: “Somos simples servos”. Quem vive no espírito de comunhão e fé nunca achará que está fazendo demais para os outros e nem ficará buscando compensações egoístas.
A fé é crer em Deus e é o tema da liturgia deste domingo, mas, para falar da fé, não podemos basear-nos só na bíblia, porque esta teria valor somente para nós, os cristãos, e não para os demais. Mas sabemos que Deus escreveu dois ‘livros’: um é a bíblia, o outro é a vida (natureza). Um está formado por letras e palavras, o outro por coisas. Nem todos conhecem, ou podem ler o livro da Escritura, mas todos podem ler o livro da vida. O apóstolo Paulo nos diz: “Desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus se tornaram visíveis à inteligência, por suas obras” (Rm 1, 20). Quem não souber ler o livro da vida nunca entenderá o livro da bíblia. A bíblia é o reflexo de uma vivência do povo com seu Deus, e de Deus com seu povo. Deus está na história do povo, e, por isto, está na bíblia. A bíblia não veio ocupar o lugar da vida. A bíblia foi escrita para nos ajudar a entender melhor o sentido da vida que vivemos e a perceber mais claramente a presença da palavra de Deus dentro de nossa realidade. Quem lê e estuda a bíblia, mas não olha a realidade do povo oprimido de ontem e de hoje, nem luta pela justiça e pela fraternidade, é infiel à palavra de Deus e não imita Jesus, é semelhante aos fariseus que conheciam a bíblia de cor, mas não a praticavam.
O Deus da bíblia se revela de duas maneiras: pela fé e pela razão. “A fé e a razão (fids et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de conhecer a ele, para que, conhecendo-o e amando-o, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio” (São João Paulo II, Introdução da Carta Encíclica Fides et Ratio). Neste mesmo documento, o Papa fala da necessidade de reciprocidade entre fé e razão: “A razão, privada do contributo da Revelação, percorreu sendas marginais com o risco de perder de vista a sua meta final. A fé, privada da razão, pôs em maior evidência o sentimento e a experiência, correndo o risco de deixar de ser uma proposta universal. É ilusório pensar que, tendo pela frente uma razão débil, a fé goze de maior incidência; pelo contrário, cai no grave perigo de ser reduzida a um mito ou superstição. Da mesma maneira, uma razão que não tenha pela frente uma fé adulta não é estimulada a fixar o olhar sobre a novidade e radicalidade do ser” (FR, 48).
Como ocorre a revelação de Deus:
1) no plano natural, mediante o universo, com sua grandeza e beleza, ordem e perfeição (Rm 1,19s; Sb 13,1-9);
2) no plano sobrenatural, ou seja, em vista da participação do ser humano na vida divina — processo este que atinge sua plenitude na visão de Deus face a face (1Jo 3,1-3; 1 Cor 13,12).
A livre resposta do ser humano a Deus que lhe fala no plano sobrenatural é a fé teologal. No centro desse diálogo entre Deus e a humanidade está Jesus Cristo. É por Ele que o Pai nos fala e é por Ele que nós Lhe respondemos; Jesus nos envolve no Sim que Ele mesmo diz ao Pai. Ora, se Jesus está no centro do diálogo, Ele está presente em sua Igreja. A Igreja é o corpo de Cristo prolongado (Cl 1,24); é o sacramento da união dos homens com Deus (Lúmen Gentium, 1), é o seio materno no qual, pelo batismo, renascemos para o Pai em Cristo. Assim, a fé, no sentido pleno da palavra, implica adesão a Deus Pai por Cristo na Igreja; ela inaugura, em cada cristão, uma vida eclesial.
Jesus Cristo assumiu ativamente a cultura de seu povo, participando da busca de soluções dos problemas colocados para a sociedade, anunciando a “Boa Nova do Reino”. Ser cristão consiste em seguir Jesus Cristo, com fé e amor, numa atitude evangelizadora e comprometida com os que mais precisam, com os pobres e excluídos da sociedade.
O ato de fé mobiliza a pessoa como um todo, depende não só do conhecimento, mas também da liberdade interna de cada indivíduo. Assim, vemos como abraçar a fé está ligado à vida moral da pessoa.
Entre os deveres em relação à fé: ações, transmitir, confessar, proteger e fidelidade, está a obrigação de todo ser humano de estudar o problema de Deus, isto é, buscar a verdade, principalmente o cristão militante. O Papa São João Paulo II nos diz, em sua Exortação Apostólica Pastores Dabo Vobis: “um momento essencial da formação intelectual é o estudo da Filosofia que leva a uma compreensão e interpretação mais profunda da pessoa, da sua liberdade, das suas relações com o mundo e com Deus. Como poderá o futuro educador, presbítero ou formador de opinião prescindir de instrumento tão eficaz no processo de discernimento da verdade? E se não se está certo da verdade, como é possível pôr em jogo a própria vida inteira e ter força para interpelar, a sério, a vida dos outros?” (PdV, 52). Deus existe ou não existe? Pode ser considerado pelos homens ou não? De fato, o problema de Deus é o do Norte ou do Fim Supremo da vida. Se Deus existe, está claro que toda a existência do homem deverá convergir para Ele, sob pena de naufragar. Se não existe, a vida humana tem outro significado. Assim como ninguém pode viajar sem bússola, sob pena de se perder, ninguém deve viver sem opinião formada, com sinceridade e lucidez, a respeito de Deus.
Ao fiel católico toca o dever de procurar conhecer melhor as verdades de sua fé, estudando, principalmente, o Catecismo em suas quatro partes: “O que a Igreja crê, celebra, vive e reza”.
Muitos católicos não conhecem devidamente a doutrina católica, isso evidencia mais e mais a necessidade urgente de que todos os fiéis católicos procurem boa formação doutrinária. Muitas pessoas consentem ao mal, às vezes de forma coletiva, porque ainda não possuem uma formação sólida e, por isso, vive-se uma degeneração: intelectual, moral e espiritual.
“O consentimento ao mal, que é um sinal preocupante de degeneração, intelectual, moral e espiritual não só para os cristãos, está produzindo, em numerosos contextos, um desconcertante vazio cultural e político, que torna incapazes de mudar e renovar. Enquanto as relações sociais não mudarem e a justiça e solidariedade permanecerem ausentes e invisíveis, as portas do futuro fecham-se e o destino de tantos povos fica aprisionado num presente cada vez mais incerto e precário” (PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Para uma melhor Distribuição da terra – o desafio da reforma agrária, nº 61).
Boa reflexão e que possamos produzir muitos frutos para o Reino de Deus.
Pe. Leomar Antonio Montagna
Presbítero da Arquidiocese de Maringá – PR
Pároco da Paróquia Nossa Senhora das Graças, Sarandi – PR