A Assembleia Legislativa do Paraná realizou na manhã desta segunda-feira (14) a Audiência Pública “A Transição da Criança para o Adulto Raro”. O encontro reuniu médicos, representantes de associações e do Poder Público, pessoas que convivem com a condição e pais de pacientes para debater um dilema contemporâneo: a inserção de adultos raros no sistema de Saúde.
“Uma preocupação muito grande das famílias de pessoas com doenças raras é onde ir após os 18 anos. Não há um centro de referência que possa atender essas famílias adequadamente”, destacou a deputada Maria Victoria (PP), que propôs a audiência pública, junto ao deputado Pedro Paulo Bazana (PSD). “Na maior parte das vezes são famílias carentes, que não têm condições adequadas para prover o acompanhamento. Há necessidade de políticas públicas para um atendimento rápido”, complementa o deputado.
Como doença rara entende-se qualquer enfermidade que afeta uma a cada duas mil pessoas. Elas atingem entre 3,5% e 5,9% da população mundial. Há mais de 6 mil doenças raras descritas, e cerca de 75% se manifestam pela primeira vez na infância. A população com essa condição no Brasil é de 13 milhões de pessoas, sendo 9 milhões crianças e jovens. No Paraná, são 660 pacientes, e 495 mil têm menos de 18 anos. Em Curitiba, o número é de 120 mil – 90 mil são crianças e jovens, de acordo com dados divulgados durante a audiência.
Com ampla experiência no atendimento desse grupo, a neurologista pediátrica Mara Lúcia Schmitz destacou uma mudança recente na problemática, a reboque principalmente do desenvolvimento da medicina. “Há 30 anos, lutávamos pelo reconhecimento das doenças raras, essas crianças não sobreviviam. O avanço permite agora que essa criança chegue à vida adulta. Antes era uma vitória chegar à adolescência. Muitos atingem 30, 40 anos ou mais”, explicou a médica, que atua no Hospital Pequeno Príncipe (HPP).
4 a cada 10 adultos raros abandonam o tratamento
Apesar da maior longevidade, no entanto, há um período de abandono. Ao completar 18 anos, a pessoa com doença rara perde o direito ao atendimento antes prestado nos hospitais infantis. Ao ingressar em hospitais adultos, enfrenta um caminho repleto de barreiras: o adulto raro precisa recomeçar todo o processo de atenção à doença do zero. Quando enfim recebe o atendimento médico, muitas vezes se depara com falta de equipamentos adequados ao seu quadro ou com profissionais despreparados.
Segundo Schmitz, o cenário leva cerca de 40% dos pacientes a abandonarem o tratamento. “Imagina, você tem uma doença grave e complexa. E daí precisa ficar batendo de porta em porta”, ilustrou a médica. Associado a isso, em muitos casos, a ausência da figura dos pais no cuidado durante a fase adulta também afasta pacientes raros dos hospitais. A sobrecarga emocional gerada por esse processo, muitas vezes, resulta na piora da enfermidade.
A problemática também ocorre por conta de limitações na formação dos profissionais que atendem adultos. “Ele não teve essa informação. Essa curva de aprendizado precisa ser feita. Eles não têm conhecimento dessas doenças e dos novos tratamentos”, destacou a neurologista. “Precisamos de médicos dispostos e de políticas públicas para fortalecer isso”.
O aprimoramento das terapias deve ampliar ainda mais o número de adultos com doenças raras ao permitir que os pacientes sobrevivam à infância e à vida adulta. “Se não [resolvermos o problema da transição], o que adianta? Investimos tudo na infância, usamos medicamentos caríssimos para o paciente chegar na vida adulta e morrer? Quando ele poderia ser uma pessoa produtiva, ter autonomia e melhora na qualidade de vida? O tempo desses pacientes está correndo”, alertou.
‘A história se repete’
A bancária Kelly Lima, de 57 anos, compartilhou sua trajetória como portadora de osteogênese imperfeita, conhecida como “doença dos ossos de vidro de cristal” – condição que atinge 1 a cada 10 mil nascidos vivos. Ela coordena no Paraná a ANOI (Associação Nacional de Osteogênese Imperfeita), que acompanha mais de 130 pessoas com a condição no Estado.
Nascida em Goioerê, no Oeste paranaense, Lima foi diagnosticada logo na infância. Em Curitiba, passou a ser acompanhada aos 5 anos. Quando chegou na vida adulta, se deparou com a falta de amparo em hospitais. Por conta própria, Lima passou a pesquisar terapias e medicamentos. Foi quando encontrou informações sobre o uso de medicamentos para a redução de fraturas, aplicados por um médico do Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília. Em 2011, aos 43 anos, finalmente iniciou o tratamento.
“Hoje essa ‘peregrinação’ ainda se repete com as crianças que completam a maioridade no HPP. Elas precisam novamente ir até uma unidade de saúde, marcar consulta com o endocrinologista, pegar encaminhamento para o Hospital de Clínicas (HC) e esperar a consulta. Mesmo tendo a prioridade no atendimento, os raros levam de 6 meses a 1 ano para chegar ao HC”, destacou. “Enquanto isso, o tratamento é interrompido. Um ano, na vida de um raro, é muito”
Estrutura nos hospitais de adultos não é adequada
A audiência também foi marcada pelo depoimento de Juliana Gavron, mãe de uma adolescente portadora da síndrome de Mowat-Wilson (SMW), condição que compromete a parte cognitiva e psicomotora, entre outras coisas. Ela é provocada por problemas na formação de órgãos e tecidos.
Com 17 anos e 8 meses, a jovem está prestes a perder o direito ao atendimento no hospital infantil. Ela passa por internações que duram meses. Uma das dificuldades observadas por Gavron é a falta de equipamentos adequados ao porte físico da sua filha, de tamanho infantil.
“Tentamos fazer a transição [para hospitais adultos] quando ela tinha 16 anos, de forma gradual e suave, para que ela não fosse pega de surpresa. Não deu certo. Os hospitais não têm preparo para receber. Esses pacientes têm altura menor e baixo peso. São adultos que vão continuar crianças. Não tem coisas simples adaptadas: agulhas e sonda para o tamanho da criança. Está sendo bem complexo”, ilustrou a mãe.
“Falta hoje a gestão dessa transição. Precisa ter uma equipe que coordene essa mudança nos hospitais, com assistente social e médicos”, complementou. “Mas isso não é posto em prática”.
Audiência discutiu soluções
Para além de debater o cenário, a audiência pública foi um momento para levantar saídas para a melhoria da vida dos adultos raros. Maria Victoria destacou um esforço conjunto com o senador Flávio Arns (PSB) para tentar levantar recursos junto ao Legislativo e Executivo, nacional e estadual, que visem a construção de um centro de referência de doenças para pessoas com mais de 18 anos. “Teríamos o know-how do Hospital Pequeno Príncipe, que se disponibilizou a nos ajudar”, destacou.
Dentre as medidas sugeridas por Schmitz está a criação de um protocolo de transição. “Temos que treinar esses jovens, os que têm cognição adequada, para que ele consiga tomar o próprio remédio e transitar em regiões próximas a sua casa”, destacou a médica. “Desde o início da sua puberdade temos que ensiná-lo a ‘andar com as próprias pernas’, ressaltando a necessidade de observar as particularidades de cada caso.
Schmitz ressaltou que a melhora no atendimento dos adultos raros contribui, a longo prazo, para economia no sistema de Saúde, ao reduzir as internações emergenciais, além de manter a capacidade produtiva do paciente. “O investimento na transição do tratamento significaria uma economia de até 5 vezes”, destacou.
Natan Monsores, coordenador-geral de Doenças Raras do Ministério da Saúde, aproveitou o momento para compartilhar os esforços da pasta, dando detalhes sobre a discussão em curso na câmara técnica da pasta que discute o protocolo de transição dos pacientes raros. O processo é pensado para começar quando o paciente tiver entre 12 e 14 anos.
“Temos o desafio de realizar uma transição segura e eficaz. O modelo é complexo, precisa alcançar os diferentes pacientes – os que têm plenas condições apesar das condições crônicas, e aqueles que possuem deficiências intelectuais”, detalhou. Ele pontuou ainda a necessidade de parceria com Estados e municípios para implementação.
Andreia Bessa, diretora Jurídica da Casa Hunter – instituição sem fins lucrativos que busca soluções públicas para os pacientes com doenças raras – citou a Casa dos Raros de Porto Alegre como um dos modelos que podem ser adotados pelo Paraná. A iniciativa, da própria instituição, é voltada para o tratamento multidisciplinar do paciente.
“Uma equipe planeja o manual de cuidado desse paciente. Ele então leva ao médico toda a informação sobre o manejo da sua doença”, explicou. “Na Casa, o paciente é acolhido desde a investigação do diagnóstico até o início efetivo do seu tratamento, independentemente da idade”, acrescentou. Segundo Bessa, o projeto é fruto da união do SUS com a sociedade civil. Ela se dispôs a compartilhar o projeto com as autoridades públicas.
Lima sugeriu a criação de um código de transição no Hospital de Clínicas – para que o paciente já dê entrada no sistema do SUS e continue o tratamento sem interrupções.
Outras participações
Também compuseram a mesa o sanitarista Clovis Boufleur, representando o senador Flávio Arns; a desembargadora Ana Claúdia Finger, do Tribunal de Justiça do Paraná; o diretor de Políticas Públicas para Família do Paraná, Ronaldo Olmo; a conselheira estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Clecy Aparecida Zardo; o neurologista do HC, Francisco Germiniani; a diretora-executiva da Fundação Ecumênica de Proteção ao Excepcional (Fepe), Claudiane Pikes dos Santos; a vice-prefeita de Piraquara, Loireci Dalmolin de Oliveira; e o diretor da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Paraná, Stenio Fragoso.
ASC/ALEP