O Cristo glorioso é o mesmo crucificado, é o mesmo da palavra, é o mesmo da eucaristia e é o mesmo que está presente naqueles que sofrem e que são marginalizados. Por Leomar Montagna

Reflexão: Liturgia do II Domingo da Quaresma, 28/02/21

O Cristo glorioso é o mesmo crucificado, é o mesmo da palavra, é o mesmo da eucaristia e é o mesmo que está presente naqueles que sofrem e que são marginalizados. Por Leomar Montagna
Na Liturgia deste II Domingo da Quaresma, veremos, na 1a Leitura (Gn 22, 1-2.9ª.10-13.15-18), que Deus não quer sacrifícios humanos e, por isso, intervém, impedindo que Abraão sacrifique o próprio filho. Abraão compreende que a vida precisa ser protegida a qualquer custo. O sacrifício de Isaac, seu filho, corresponderia à anulação do projeto de vida de Deus. Sacrifícios humanos, tanto ontem como hoje, são inadmissíveis, Deus nos chama para sermos construtores de vida e não artífices da morte.
 
Vejamos outros apontamentos:
1º) Deus chama Abraão e nos chama, também, hoje. Abraão escuta e responde: “Aqui estou”, sem colocar condições e objeções;
 
2º) “Deus pôs Abraão à prova”, sem avisar, pede para renunciar ao passado (“Deixa tua terra”) e sacrificar o futuro (Isaac, sua segurança). Os cananeus sacrificavam crianças aos deuses. Abraão viveu um dilema: seguir os costumes dos cananeus, matar o primogênito para ter a bênção dos deuses, ou crer no Deus da promessa. Abraão sabe que Deus não quer a morte, Deus não quer sacrifícios humanos.
 
3º) Numa atitude de fé, diante do mistério, Abraão obedece. Isaac pergunta onde está o essencial, a vítima a ser imolada. Abraão se cala e pensa: Deus providenciará, Deus é maior do que os laços de sangue. Após a intervenção de Deus, Abraão “viu um carneiro preso num espinheiro… e ofereceu-o em holocausto no lugar do seu filho”. Na Lei estava que todo primogênito deveria ser resgatado (Ex 34, 19-20).
 
4º) Pela atitude de fé de Abraão, toda a humanidade ganha: “Em ti, todos os povos serão abençoados”.
 
Na 2ª Leitura (Rm 8, 31b-34), o Apóstolo Paulo nos apresenta uma pergunta: “Quem nos separará do amor de Cristo e do Pai?” Nesse contexto, há uma única resposta: só nós podemos separar-nos do amor de Deus quando nos punimos e não aceitamos os nossos limites. Deus jamais tomará a iniciativa da ruptura. Ele é um Deus fiel. Com o amor de Deus, manifestado em seu Filho, nada mais temos a temer: nem dificuldades, nem perseguições, nem martírio, nem qualquer forma de dominação. Nada poderá desfazer o que Deus já realizou. Nada poderá impedir o testemunho dos cristãos. E nada poderá opor-se à plena realização do projeto de Deus. A base fundamental de toda a vida reside naquilo que aconteceu em Jesus. Por causa dele, e somente por causa dele, é que podemos caminhar em direção ao amanhã e à vitória: “Em Cristo somos mais que vencedores”. Ninguém tem o direito de se achar derrotado, muito menos de ficar se punindo.
 
No Evangelho (Mc 9, 2-10), vemos que o Cristo Glorioso da teofania é o mesmo crucificado, é o mesmo da Palavra, é o mesmo da eucaristia e é o mesmo que está presente naqueles que sofrem e que são marginalizados.
 
O tempo da Quaresma nos convida a experimentar a ‘teofania’, que pode ser um retiro espiritual, um curso de formação, um maior engajamento na Igreja. Ou seja, a teofania é uma realidade que ilumina outras realidades.
 
Teofania é, também, buscar a intimidade com Deus, sua amizade, para viver a justiça e a solidariedade, isto é, uma existência mística. No meio dos maiores sofrimentos, Deus nos dá o consolo. Na transfiguração, apareceram-lhe Elias e Moisés. Elias representa o movimento profético: vez e voz de todos os que são perseguidos e que sofrem. Moisés representa a Lei, isto é, a vontade de Deus.
 
Este trecho do Evangelho é uma catequese sobre o projeto de Deus e as dificuldades que encontramos no nosso dia a dia, pois, assim como Pedro, que não admitia um messias sofredor, nós, também, às vezes, queremos um Cristo sem cruz. Tiago e João também discutiam, pelo caminho, quem seria o maior e ocuparia o primeiro lugar. Não querem compromisso com as realidades temporais ou não querem entender o sonho de Deus que é vida em abundância para todos, por isso eles dormem. O sono dos discípulos é o sono de quem não consegue acompanhar Jesus em sua oração e missão em união com o Pai. Depois de acordar do sono profundo, Pedro dá sinais de que não está sintonizado com o projeto de Deus: “Ele não sabia o que estava dizendo”. Pedro quer que Jesus, Moisés e Elias se acomodem na montanha, desviando Jesus de sua missão, e que Ele se torne privilégio de alguns poucos. O Concílio Vaticano II já constatava que “o divórcio entre a fé professada e o comportamento quotidiano de muitos cristãos deve ser contado entre os mais graves erros do nosso tempo” (Gaudium et Spes – Alegria e Esperança, 43).
 
O Monte Tabor é um momento forte de ouvir Jesus falar: “Este é meu filho amado. Ouçam-no”. O verdadeiro discípulo não é aquele que se esconde em visões celestiais, e sim aquele que assume as contradições da história, encarnando os verdadeiros valores do evangelho. Será necessário, ainda que, hoje, venham vozes do céu para nos dizer: “Homens da Galileia, por que ficais aí, parados, olhando para o céu?” (At 1,10-11). Se somos capazes de, mesmo que por instantes, vislumbrar pedaços do céu, sejamos também capazes de concretizá-lo, já, em ações que promovam aqueles que sofrem, que instaurem a justiça e que se posicionem contra tudo o que torna a vida indigna.
 
No Monte Tabor, Jesus manifesta sua glória, mas nos chama à intimidade com Ele, para entrarmos na sua nuvem divina, contemplar o seu lindo rosto, nos apaixonar por Ele e escutarmos a voz do Pai.
 
Podemos subir alguns outros montes, além do Monte Tabor:
– Monte Moriá (Gen 22), onde Deus pede a Abraão para pegar o seu filho único, subir o monte e sacrificar esse filho; oferece-lhe, em troca, a sua benção e a fecundidade na descendência.
 
– Monte Sinai (Ex 3 e 4; 19 e 20), onde Deus pede a Moisés que tire as sandálias, vá ao faraó e liberte o seu povo da escravidão do Egito; ao mesmo tempo, Deus lhe oferece a segurança da sua presença e a promessa da terra prometida. 
 
– Monte Carmelo, Deus oferece a Elias segurança no triunfo, no seu poder e na sua força. Deus nos pede para dar morte aos nossos vícios, maus hábitos, atitudes pecaminosas, afetos secretos e inconfessados, para oferecer-lhe todo o nosso coração.
 
– Monte Calvário, Jesus quer resgatar a humanidade do pecado e nos conceder uma nova vida, por meio de sua morte e de sua ressurreição. Jesus obedece e oferece livremente a sua vida, embora isto suponha ver o seu corpo destroçado, o seu coração trespassado e as suas mãos pregadas na cruz. Aqui, Jesus nos pede para morrer com Ele, para ressuscitar para uma vida nova; ser grão de trigo que cai na terra e morre para dar bom fruto; fazer a vontade de Deus e não a nossa e saciar a sua sede implacável. 
 
Boa reflexão e que possamos produzir muitos frutos para o Reino de Deus.
 
Pe. Leomar Antonio Montagna
Presbítero da Arquidiocese de Maringá – PR 
 
*Coloco, a seguir, uma reflexão do Pe. Raniero Cantalamessa, sobre o tema da liturgia deste II Domingo da Quaresma.
 
Onde fala Jesus… e onde não. Escutai-o!
 
“Este é meu Filho amado, escutai-o”. Com estas palavras, Deus Pai dava Jesus Cristo à humanidade como seu único e definitivo Mestre, superior às Leis e aos profetas. 
 
Onde fala Jesus hoje, para que possamos escutá-lo? Fala-nos, antes de tudo, por meio de nossa consciência. Ela é uma espécie de “repetidor”, instalado dentro de nós, da própria voz de Deus. Mas, por si só, ela não basta. É fácil fazê-lo dizer o que nós gostamos de escutar. Por isso, necessita ser iluminada e sustentada pelo Evangelho e pelo ensinamento da Igreja. O Evangelho é o lugar por excelência no qual Jesus fala-nos hoje. Mas sabemos, por experiência, que também as palavras do Evangelho podem ser interpretadas de maneiras distintas. Quem nos assegura uma interpretação autêntica é a Igreja, instituída por Cristo precisamente com tal fim: “Quem a vós escuta, a mim escuta” (Lc 10, 16). Por isso, é importante que busquemos conhecer a doutrina da Igreja, conhecê-la em primeira mão, como ela mesmo a entende e a propõe, não na interpretação frequentemente distorcida e redutiva dos meios de comunicação. 
 
Onde não fala Jesus hoje, para que possamos escutá-lo? Ele não fala certamente por meio de magos, adivinhos, astrólogos, pretensas mensagens extraterrestres; não fala nas sessões de espiritismo, no ocultismo. Na Escritura, lemos esta advertência a respeito: “Não haja entre ti ninguém que faça passar seu filho ou sua filha pelo fogo, que pratique adivinhação, astrologia, feitiçaria ou magia, nenhum encantador nem consultor de fantasmas ou adivinhos, nem invocador de mortos. Porque todo aquele que faz estas coisas é uma abominação para Yahweh teu Deus” (Dt 18, 10-12). 
 
Estes eram os modos típicos dos pagãos de referir-se ao divino, que buscavam a sorte consultando os astros, ou vísceras de animais, ou no voo dos pássaros. Com essa palavra de Deus: “Escutai-o!”, tudo aquilo acabou. Há um só mediador entre Deus e os homens; não estamos obrigados a ir “às cegas” para conhecer a vontade divina, a consultar isto ou aquilo. Em Cristo, temos toda resposta. 
 
Lamentavelmente, hoje, aqueles ritos pagãos voltam a estar na moda. Como sempre, quando diminui a verdadeira fé, aumenta a superstição. Tomemos a coisa mais inócua de todas, o horóscopo. Pode-se dizer que não existe jornal ou emissora de rádio que não ofereça diariamente a seus leitores ou ouvintes o horóscopo. Para as pessoas maduras, dotadas de um mínimo de capacidade crítica ou de ironia, isso não é mais que uma inócua brincadeira recíproca, uma espécie de jogo e de passatempo. Mas, enquanto isso, olhemos os efeitos ao largo. Que mentalidade se forma, especialmente nos jovens e nos adolescentes? Aquela segundo a qual o êxito na vida não depende do esforço, da aplicação no estudo e constância no trabalho, mas de fatores externos, imponderáveis; de conseguir dirigir em proveito próprio certos poderes, próprios ou alheios. Pior ainda: tudo isso induz a pensar que, no bem ou no mal, a responsabilidade não é nossa, mas de algo do além. 
 
Devo aludir a outro âmbito no qual Jesus não fala e onde, contudo, se lhe faz falar todo o tempo. É o das revelações privadas, mensagens celestiais, aparições e vozes de natureza variada. Não digo que Cristo ou a Virgem não possam falar também através destes meios. Fizeram-no no passado e podem fazer, evidentemente, também hoje. Só que, antes de dar por certo que se trata de Jesus ou da Virgem, e não da fantasia enferma de alguém, ou pior, de farsantes que especulam com a boa fé das pessoas, é necessário ter garantias. Necessita-se, neste campo, esperar o juízo da Igreja, não precedê-lo. São ainda atuais as palavras de Dante: “Sede, cristãos, mais firmes ao mover-vos; não sejais como pena a qualquer sopro” (Par. V, 73s).
 
São João da Cruz dizia que desde que, no Tabor, disse-se de Jesus: “Escutai-o!”, Deus se fez, em certo sentido, mudo. Disse tudo; não tem coisas novas para revelar. Quem lhe pede novas revelações ou respostas ofende-o, como se não se houvesse explicado claramente ainda. Deus segue dizendo a todos a mesma palavra: “Escutai-o!”. Lede o Evangelho: aí encontrareis nem mais nem menos do que buscais” (Zenit, 10/03/2006).
 
Fonte: ARQIDIOCESE MARINGÁ