Eu tenho a primeira edição do segundo romance de Paulo Francis (“Cabeça de Negro”) autografada pelo autor. “Para Edilson Pereira, com os melhores votos do Paulo Francis”. O lançamento do livro ocorreu no Brasil em dois lugares. No Rio de Janeiro, cidade natal e de origem das atividades profissionais e intelectuais do jornalista e escritor e em São Paulo onde passou a ganhar dinheiro como correspondente em Nova York inicialmente de Folha de S. Paulo e depois de O Estado de S. Paulo. Ele também foi contratado pela Rede Globo anos depois.
O livro foi autografado na noite de 15 de agosto de 1979. O lançamento do livro foi antecedido por manifestações de dezenas de intelectuais , inclusive um emocionado manifesto do cineasta Glauber Rocha. Fiquei tão comovido que tenho o artigo de Glauber até hoje. Um pedaço de papel amarelado pelo tempo: “Apenas três intelectuais magnetizaram Glauber Rocha: Paulo Francis, Jean-Luc Godard e Che Guevara”. E por aí Glauber foi escrevendo, convocando Francis para entrar na política para tentar mudar o Brasil. Glauber sempre foi eloquente e apaixonado.
Mas Francis tinha outros objetivos. E embora o livro vendesse muito, o resultado o frustrou. O livro não cumpriu principal objetivo: Francis queria deixar de ser jornalista e ser apenas escritor de romances. Para viver de direitos autorais. Não deu. Continuou jornalista e morreu jornalista. Pior, morreu por ser jornalista. Mas esta história conto no final. Alguém pode perguntar o que eu fazia em São Paulo em agosto de 1979. Acrescento: eu trabalhava na Agência Folhas, no quarto andar do prédio da Barão de Limeira, 425, em Campos Elíseos.
Uma parte do quarto andar era redação da Folha de S. Paulo e a outra parte Agência Folhas, 50 por cento da área do quarto andar para cada uma. Eu era leitor assíduo dos livros e dos artigos e ensaios de Francis. Desde 1969, quando apareceu o Pasquim, a bíblia avacalhada de todos nós. Ríamos para não chorar. Não era amigo dele, acrescento, mas já tinha visto ele três ou quatro vezes na área. Em suas vindas ao Brasil ele sempre passava na redação da Folha. Resumindo, éramos empregados da mesma empresa. Ele qualificado e famoso e eu na minha tranquila obscuridade.
Então, comprei o livro e entrei numa fila em que se encontravam jornalistas, escritores, intelectuais, empresários e muitas mulheres bonitas vestidas com certa elegância. E quando chegou a minha vez ele autografou o livro. E voltei a trabalhar. Simples. Estou contando tudo isto porque se vivo fosse, Paulo Francis estaria hoje completando 92 anos. Era possível. Minha tia em Maringá está com 97 e está lucida. Não enxerga nada, mas Jorge Luís Borges também não enxergava e produziu boa literatura. É apenas uma teoria. Mas Francis morreu aos 66 anos de morte bizarra em Nova York, no dia 4 de fevereiro de 1997. No mesmo ano em que me mudei em novembro para Curitiba.
Lembro que a Veja estampou Paulo Francis na capa com a seguinte manchete: Ele vai fazer falta. Sinceramente não sei se fez. É difícil avaliar. Quando morreu, Paulo Francis era um astro do conservadorismo brasileiro. Sem contribuição para o que se convencionou a chamar de “projeto de país”. A verdade é que a esquerda não teve e a direita nunca se interessou pelo assunto. Talvez Darci Ribeiro e Leonel Brizola fossem os únicos a tentar levar a coisa adiante. E, talvez, por isso, eram odiados. Principalmente Brizola.
O movimento ideológico pendular de Francis não deixou de ser irônico porque ele foi da extrema esquerda trotsquista na juventude para um vago liberalismo na idade madura. Mas foi um movimento lento. Na juventude foi preso por ser esquerdista. E no começo dos anos 70, foi para Nova York ser correspondente de jornais brasileiros, justamente porque estava cansado de ser preso e não viu outra alternativa que não fosse cair fora. Chegou em Nova York a princípio se segurando com bolsa de pesquisas fornecida pela generosa Fundação Ford. E fazendo artigos para o Pasquim e publicações da Editora Três como IstoÉ e revista Status.
Depois pegou fama e embalo e com o tempo ficou rico. Para os padrões brasileiros, claro. Ele talvez gostaria de ler isto, mas não concordaria. Entrou na Globo e a medida em que o tempo passava o esquerdismo sumia e o conservadorismo crescia. Ele brigou com o ombudsman da Folha nos anos 90 e foi para o Estadão. Francis tinha a língua mais solta que Ciro Gomes quando resolve falar de Lula. Ele se acostumou a falar todo tipo de absurdos, coisas às vezes ofensivas, sobre José Sarney e outros políticos menos conceituados. Sem sofrer represálias. Se acostumou. Este foi o erro fatal.
Como tinha informações, passou a falar de corrupção na Petrobrás. Que existia. Mas não tinha provas. Achava que por ser Paulo Francis, não precisava. Foi processado pelos diretores da empresa. Os advogados foram cruéis. Em vez de processar no Brasil, processaram em Nova York, onde a justiça não tem esqueminhas tropicais. Em vez de reais, pediram indenização em dólares, caso Francis não provasse a corrupção. Apenas 30 milhões de dólares. Toda grana acumulada em décadas de trabalho teria de ir para os acusados. Apartamento em Nova York, imóveis no Rio de Janeiro e apartamento em Paris, um pequeno regalo para si mesmo para passar semanas de férias na Europa.
A possibilidade de ficar pobre aos 66 anos foi demais para o pobre coração de Paulo Francis. Ele pediu para o seu amigo José Serra falar com FHC. Para tirar o processo e aliviar a barra. Serra disse que falou com FHC. E que FHC disse que não poderia fazer nada, porque era assunto dos diretores da Petrobrás. Uma sacanagem sem tamanho. O cara mandava no Brasil. Na realidade, FHC estava achando o máximo ver a estaca cravada no peito de Francis. Vaidoso, o ex-presidente não gostava das críticas que recebia, principalmente de um sujeito do naipe de Francis. Vê-lo imobilizado não deixava de ser bom negócio. Mas Francis não aguentou o tranco. Teve um enfarte e morreu. Morreu de amor por sua última paixão. O dinheiro.