Crônica premiada em 1º lugar no V Concurso Literário ” Maria Mariá”
Ele tinha nome forte: Rodolpho, ela, chique: Carmem, e fizeram filhos. Ele gostava de fazer, ela nem tanto, mas nasceram oito; quatro homens, quatro mulheres formando prole a disputar o parco alimento na diferença brutal entre o querer e o não ter; entre o poder ter, mas não se dispor a lutar.
Impoluto, a voz dele troava, a dela escorria em mel. Rápidos, duros, implacáveis, decididos eram os seus gestos, vestidos em pétalas, macios, suaves, perfumados, os dela, diferença que os fazia Fera e Bela, com ela driblando sua ferocidade a lhe dar inteiro poder e se esquecer de si doando-se, dando-se.
Sem pressa, ele se levantava às onze com o banheiro pronto ao banho e barba enquanto ela, já às cinco recolhia ovos, apiloava arroz, escolhia feijão, arrancava mandioca, rachava lenha, derretia banha, farinhava mesa para o pão que ele exigia fresco, fofo, crocante. Com café preto e forte. Bem forte e quente de afoguear língua e bochechas. Tomado com o jornal recolhido nos vaivéns entre casa e quintal.
E a vida, na estreiteza da mesmice, mostrava que mesmo unidos o vínculo era pouco, a conversa vazia, o carinho nulo no nebuloso existir. Haveria amor, ou pelo menos respeito? Ninguém saberia.
No vai dessa valsa, olhares mostravam que a Fera indomesticada nunca daria o valor imanente à Bela por mais que fizesse, se abrisse e se dedicasse; e, se não conseguia ver, como reconhecer? Resposta difícil, mesmo porque a doação espontânea que ela punha em seus atos sem nada pedir ou mandar, partia talvez da tonelada de amor à família com a irrefletida submissão. Afinal, nessa invisibilidade só fez sem pedir ou cobrar dádivas a si própria, desatenta de que a segurança exterior exige sintonia com a interior e que atos diários e repetitivos aniquilam a dualidade necessária, fator importante entre o dar e receber transformados em poeira a olhos ingratos, impuros e cobertos de vaidade.