Crônica: Dualidade Perfeita

Por - Renato Benvindo Frata - Acadêmico correspondente da Academia de Letras de Maringá Presidente da Academia de Letras, Ciências e Artes de Paranavaí- PR

foto - reprodução internet

Crônica premiada em 1º lugar no V Concurso Literário ” Maria Mariá”

Ele tinha nome forte: Rodolpho, ela, chique: Carmem, e fizeram filhos. Ele gostava de fazer, ela nem tanto, mas nasceram oito; quatro homens, quatro mulheres formando prole a disputar o parco alimento na diferença brutal entre o querer e o não ter; entre o poder ter, mas não se dispor a lutar.
Impoluto, a voz dele troava, a dela escorria em mel. Rápidos, duros, implacáveis, decididos eram os seus gestos, vestidos em pétalas, macios, suaves, perfumados, os dela, diferença que os fazia Fera e Bela, com ela driblando sua ferocidade a lhe dar inteiro poder e se esquecer de si doando-se, dando-se.
Sem pressa, ele se levantava às onze com o banheiro pronto ao banho e barba enquanto ela, já às cinco recolhia ovos, apiloava arroz, escolhia feijão, arrancava mandioca, rachava lenha, derretia banha, farinhava mesa para o pão que ele exigia fresco, fofo, crocante. Com café preto e forte. Bem forte e quente de afoguear língua e bochechas. Tomado com o jornal recolhido nos vaivéns entre casa e quintal.

Filhos na escola uns, no trabalho outros, na quietude de mãe a cuidar do fumarento fogão que lhe ardia olhos e alma tostando os dois, negritando a casa, a pele, as coisas, enquanto ele, colarinho engomado, sapato engraxado, calça vincada, palitava dentes após repasto em descanso na varanda cercada de miosótis. Jornal desdobrado ao balanço da cadeira, cismava soltando bufas azedas de destilados com comida de tunguete. Ela, no tanque movido a braços e sabão de cinza, a montoeira de roupas, o quaradouro, os fios de varais, para correr, aos pulinhos e mexer quando em quando, panelas no fogão e arrumação de camas. Depois a limpeza, o ferro quente, a lida e a reza, nem mais, nem menos na dança a que ela se dispunha para não faltar ao que nunca sobrou. Pimpão e garboso, alinhado e inteirado dos fatos, saía para voltar quando o corpo pedisse, em sorriso ou chutando pedras se mau o carteado, para se aninhar na torpeza da alegria efêmera ou tristeza imorredoura, até o banho morno do outro dia com a repetição dos fatos.
E a vida, na estreiteza da mesmice, mostrava que mesmo unidos o vínculo era pouco, a conversa vazia, o carinho nulo no nebuloso existir. Haveria amor, ou pelo menos respeito? Ninguém saberia.
No vai dessa valsa, olhares mostravam que a Fera indomesticada nunca daria o valor imanente à Bela por mais que fizesse, se abrisse e se dedicasse; e, se não conseguia ver, como reconhecer? Resposta difícil, mesmo porque a doação espontânea que ela punha em seus atos sem nada pedir ou mandar, partia talvez da tonelada de amor à família com a irrefletida submissão. Afinal, nessa invisibilidade só fez sem pedir ou cobrar dádivas a si própria, desatenta de que a segurança exterior exige sintonia com a interior e que atos diários e repetitivos aniquilam a dualidade necessária, fator importante entre o dar e receber transformados em poeira a olhos ingratos, impuros e cobertos de vaidade.