“Somos 7 milhões de domésticas, e 78,8% são mulheres pretas, sendo uma profissão quase hereditária. Ainda existem patrões que acreditam que essas profissionais são de propriedade privada de suas famílias, não honrando seus compromissos trabalhistas. Cerca de 60% das domésticas não trabalham com carteira assinada, as relações de trabalho ainda não são humanizadas e existem diversas domésticas vivendo em situações análogas à escravidão.”
O relato acima é da rapper e historiadora Preta Rara, que durante sete anos trabalhou também como empregada doméstica em casas de famílias de classe alta e média-alta de Santos (SP), sua cidade natal. Foi a partir dessa experiência que ela criou, no Facebook, em 2016, a página “Eu, empregada doméstica”, para relatar suas experiências, “os piores sete anos da minha vida”. Sua página virou uma referência nacional e internacional com relatos sobre a realidade dessas trabalhadoras no Brasil e virou um lugar para “descarrego” para milhares de outras profissionais desabafarem.
A situação descrita por Preta Rara se agravou com a crise causada pela epidemia de covid-19. Além do desrespeito às regras trabalhistas, cuja regulamentação, aprovada por senadores e deputados, faz cinco anos no dia 1º de junho, agora, são diversos relatos de descaso com a saúde das trabalhadoras domésticas.
“Em época de pandemia do novo coronavírus, essas trabalhadoras estão sendo dispensadas sem salário. Pessoas que se dedicam exclusivamente pra cuidar de uma família, abrindo mão de estar com a sua própria. E eu pergunto: quem cuida de quem sempre esteve no lugar de cuidar? Hoje, existem diversas trabalhadoras em casa e sem sua fonte de renda”, reclamou Preta Rara em seu post mais recente .
Diante dos riscos, o Ministério Público do Trabalho (MPT) elaborou nota técnica no início da epidemia no Brasil com orientações que estimulam a dispensa remunerada dos trabalhadores domésticos, com medidas para reduzir riscos de contaminação. Porém, segundo a iniciativa #CuidadDeQuemTeCuida, diversos estados, como Pará, Ceará, Maranhão e Rio Grande do Sul incluíram o trabalho doméstico como atividade essencial.
“O Ministério Público do Trabalho já declarou que é obrigatório garantir que trabalhadores domésticos sejam dispensados — a não ser em casos de real necessidade, como cuidadores de idosos e de pessoas com deficiência”, afirma o movimento, que pede que a Procuradoria-Geral do Trabalho negocie com os estados a retirada do trabalho doméstico da lista de atividades essenciais.
A Medida Provisória 936/2020 permite a diversas categorias, entre elas a dos trabalhadores domésticos, a assinatura de acordos com seus empregadores, visando a redução da jornada ou a suspensão do contrato de trabalho.
No caso do serviço doméstico, o acordo deve ser escrito e assinado por empregador e empregado. Deve prever se a redução da jornada (e a consequente redução salarial) será de 70%, 50% ou 25%, por quanto tempo a redução irá durar, ou se todo o contrato será suspenso temporariamente. O acordo deve ser registrado no site do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, do governo federal.
O trabalhador doméstico receberá o benefício do governo, tendo por base a média dos últimos três salários que tiver recebido, conforme registrado pelo empregador no sistema e-Social. Modelos de contratos podem ser encontrados no portal e-Social.
Direitos desrespeitados
Em dezembro, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério da Economia, divulgou uma pesquisa mostrando que a informalidade no trabalho doméstico aumentou nos últimos anos. Em 2013, mais de 30% das trabalhadoras tinham carteira assinada. Mas o número caiu nos últimos anos, chegando a 28,3% em 2018.
A categoria vem passando por um momento muito difícil, com o crescimento do número de diaristas, e a crise financeira das famílias que ainda buscam condições para manter o serviço. As profissionais estão ficando mais velhas, mas infelizmente menos protegidas. A Lei Complementar 150, de 2015, [que regulamentou a PEC das Domésticas — Emenda Constitucional 72, de 2013] ampliou os direitos sociais, mas na prática eles não estão sendo pagos — lamenta o presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH), senador Paulo Paim (PT-RS).
Rose de Freitas também recorda do processo legislativo que levou à equiparação dos direitos do trabalho doméstico. “Foi muito árduo. Eu me recordo que todas as vezes que esse assunto chegava na pauta ele era retirado. Havia inclusive ameaça das próprias trabalhadoras dizendo que se isso fosse aprovado elas perderiam seus empregos. E isso não aconteceu, ao contrário, os direitos como por exemplo FGTS, hora extra dessas trabalhadoras foram reconhecidos. Depois dessa conquista não havia mais espaço para colocar trabalhadoras informais dentro de casa”, afirma.
Mais de 6 milhões de brasileiros dedicam-se ao trabalho doméstico. Como mensalistas, diaristas, babás, cuidadoras, motoristas, jardineiros ou quaisquer outros profissionais contratados para cuidar dos domicílios e da família de seus empregadores. Desse total, segundo o Ipea, 92% são mulheres — em sua maioria negras, de baixa escolaridade e oriundas de famílias de baixa renda.
Um dado positivo na pesquisa é que houve uma tendência de aumento na remuneração das trabalhadoras domésticas, por conta da política de valorização do salário mínimo, que vigorou entre 2004 e 2019. Em 1995, o salário médio destas trabalhadoras era de R$ 525, e subiu para R$ 877 em 2018, em valores reais, corrigidos pela inflação.